LP / CD / Digital

Stromae

Multitude

Mosaert/ Polydor/ Darkroom/ Interscope

Texto de João Mineiro

Publicado a: 11/04/2022

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O tempo é uma matéria muito relativa. Na nossa trajetória biográfica, nove anos passam a correr. Mas na indústria cultural, nove anos podem parecer uma eternidade. Alimentada por fluxos incessantes de informação, estímulos e produtos, a indústria cultural vive refém de uma economia política da atenção baseada na procura da novidade permanente, na produção ininterrupta de conteúdos e na lógica do consumo instantâneo, rápido e imediato. Como não vive no vazio, o campo da produção artística e cultural tanto reflete como potencia a aceleração do tempo social, marcado pelo presentismo, pelo imediatismo e pela disputa permanente de plataformas e algoritmos que condicionam, e por vezes até determinam, a produção social do gosto e as tendências do consumo cultural. 

De single em single, de vídeo em vídeo, de participação em participação, de post em post, de projeto em projeto, de entrevista em entrevista, a regra é produzir muito, produzir rápido e comunicar sempre. O próximo episódio começa em 3, 2, 1… Antes que chegue a próxima novidade é imperativo que se esteja em cena e que não se abandone o palco. Só que o tempo da criação artística não é necessariamente o tempo da indústria cultural e dos seus calendários comerciais. À luz dos princípios do mercado, pode parecer incompreensível que Stromae tenha “desaparecido” durante quase 10 anos depois de conquistar o mundo com Cheese (2010) e Racine carré (2013), álbuns que hão-de figurar nos mais importantes livros sobre a história da música feita neste início de século, e onde brilham pérolas como “Papaoutai”, “Tous Les Mêmes”, “ave cesária”, “Alors on dance”, “Formidable”, “carmen” e muitas outras.  

Apesar do sucesso global desses dois álbuns e da cultura visual e performática que os enquadrou, Stromae decidiu sair de cena e foi preciso esperar quase uma década para que nos fizesse chegar o terceiro e tão aguardado álbum. Antes disso precisou de parar para poder viver, para não se sentir redundante ou ver a sua existência subjugada aos próprios ritmos frenéticos de uma indústria rendida ao seu génio e sucesso comercial. Não quer isto dizer que neste tempo tenha estado ausente da música ou da criação artística. Mas ao impor o seu próprio tempo à indústria provou que não há nenhuma lei determinista que faça equivaler o sucesso comercial à exposição permanente e interrupta. Stromae controlou o seu próprio tempo, viveu experiências gratificantes e dolorosas, e Multitude é a melhor expressão disso mesmo: um álbum cuidado, inventivo, honesto, provocador e desafiante, em que o músico se entrega de alma, corpo e coração. 

Multitude reflete, desde logo, a própria biografia e identidade do seu criador. Apesar viver na Bélgica, e cantar na língua francesa, a vida de Stromae foi profundamente marcada pelas múltiplas viagens que fez, pelas histórias com que se cruzou e pelas pessoas com quem criou laços e afetos em diversas partes do mundo. Toda essa história se reflete num álbum verdadeiramente global, que tanto reflete os périplos de infância com a sua mãe por África e pela América do Sul, como evidencia as suas descobertas enquanto criador, descendente da imigração africana na Europa e com os ouvidos sintonizados em todas as diásporas empenhadas em sonoridades que superam as próprias fronteiras nacionais. 

Ao longo do álbum escutamos um charango andino, uma guitarra erhu chinesa, uma flauta ney do Médio Oriente, as batidas eletrónicas do baile funk brasileiro ou inspiradas em DJ Alex da Argentina, as influências rítmicas do semba, da marrabenta, da coladeira e da rumba congolesa, o zouk e o calypso, a cumbia eletrónica mexicana, as modernas sonoridades do Mali, um coro búlgaro e no meio de tudo isto a espessura da Orquestra Nacional da Bélgica. Tudo junto, envolto, revolto e misturado num diálogo com a música folk, a afropop popularizada por Burna Boy, a eurodance de que é herdeiro e a pop eletrónica à qual procura acrescentar novas possibilidades. 

Para além da demonstração de cultura, sabedoria, ecletismo e apetência para a escuta, o que é realmente notável é que a referência a esta multidão de sons, histórias, referências e encontros nunca soa a excesso, a um mero exercício de erudição técnica, a uma demonstração estéril de conhecimento ou à proclamação de um conjunto de chavões sobre a ideia de “fusão”. Todos os elementos se mesclam e conjugam num objeto artístico coerente, relevante, dotado de harmonia estética e limado até ao detalhe, como se Stromae fosse um ourives minuciosamente empenhado em cada pormenor da sua obra. A sua multitude é uma soma coerente de singularidades e não um princípio abstrato que as neutraliza. Em certo sentido, é um exercício de descolonização antielitista dos imaginários que procura superar os próprios espaços de representação nacional e desconstruir as fronteiras largamente artificiais entre a música popular e a música erudita, a “alta” e a “baixa” cultura, os gostos populares e os gostos de elite, nunca deixando de homenagear a história e as heranças que assume como ponto de partida do seu processo artístico.

Para além disto, que já não seria pouco, Multitude assume um outro significado e que remete para o próprio processo de construção das múltiplas personagens, personalidades e encenações em que se baseia a nossa relação com mundo e as nossas interações com os outros. Esse é, aliás, um universo estético que Stromae gosta de explorar, veja-se a desconstrução dos papéis e do binarismo de género a que se dedica em “Tous Les Mêmes” ou a exploração do voyerismo e da representação da fragilidade artística a que literalmente deu corpo no videoclipe de “Formidable”. 



Tanto na forma, como no conteúdo, Multitude é um álbum com as doses certas de sarcasmo e provocação, como quem força um diálogo sem concessões, nem para si, nem para nós que o escutamos. Em “C’est que du bonheur” discute o papel social da paternidade, onde igualmente ecoa a sua poderosa e performativa “Papaoutai”. Em “Déclaration” questiona os papéis de género e a urgência da sua desconstrução. Em “L’Enfer” avança sem medos e chavões sobre o tema da saúde mental e as contradições entre os papéis que desempenhados e os mundos interiores que habitamos. E no magnífico díptico “Mauvaise Journée” e “Bonne Journée” sugere que todas e todos estamos nessa luta e nesse espaço que se forma entre as manhãs dolorosas e as manhãs luminosas, entre os copos meio vazios e meio cheios, entre a esperança e o abismo. 

Quem somos nós no mundo perante os outros? O que é que revelamos e ocultamos?  Que espaço habitamos entre as diferentes vozes que encenamos? Stromae sabe que a nossa apresentação no mundo, perante os outros, incorpora e exterioriza regras de conduta e comportamento culturalmente definidas e socialmente expectáveis. É por isso, aliás, que o próprio conceito de “pessoa” etimologicamente remete para o significado de máscara: estar no mundo implica representar papéis, sendo nesses papéis que nos conhecemos uns os outros e que nos reconhecemos a nós próprios. Tal não significa que essas representações remetam para uma espécie de aparência ou de simulacro que esconde e oculta o “verdadeiro eu”. Somos sempre o nosso encontro com o mundo e Stromae não se cansa de o mostrar. É por isso que nos propõe uma narrativa onde os nossos mundos interiores se relacionam umbilicalmente com as personagens que desempenhamos nos trilhos da vida quotidiana. 

Muito longe do cinismo, mas muito perto da hiperconsciência, Stromae interpela-nos de forma crua, sem rodeios ou concessões, da mesma forma que assume e abraça todas as suas (e as nossas?) fragilidades. Em “L’Enfer” fala-nos em direto da solidão profunda. Em “Riez” desconstrói as expectativas do sucesso e as desigualdades que as diferenciam. Em “La solassitude” trabalha sem receios os paradoxos emocionais das relações afetivas. Em “C’est que du bonheur” faz uma declaração de amor ao filho que o salvou, e ao mesmo tempo um relato cru e hiperconsciente do quão efémero e o nosso ciclo de vida. Para lá de todas as personagens que somos, esses ecos de vozes de que também nos falou Rodrigo Amarante, estão todos os paradoxos que Stromae enfrenta sem rodeios ou ligeirezas. Brutalmente honesto, extremamente frágil e sempre provocador, Stromae está no meio da multidão e é para lá que nos convoca. 

Nesse lugar singular que construiu, os ritmos calorosos, dançáveis e irresistíveis nunca deixam de refletir a sua vocação crítica, inquieta e interventiva. Em “Santé”, canção de ritmo poderoso e enfático, presta homenagem às vítimas das longas e difíceis jornadas de trabalho, mesmo que em alguns momentos num tom ligeiramente paternalista. Em “Déclaration” propõe que dancemos em nome da urgência do feminismo e da desconstrução da masculinidade normativa. Em “Riez” move-nos numa sarcástica paródia às desigualdades. E em “Fils de joie” recorre à Orquestra Nacional da Bélgica e ao baile funk brasileiro para prestar homenagem e honras de Estado a uma trabalhadora do sexo, num país que, de forma pioneira, acaba de legislar o fim da criminalização do trabalho sexual. Coincidência?

A combinação entre ritmos dançáveis e letras assentes na crítica social já estava presente desde “Alors on dance”, tema que legitimamente se transformou num hino de dança global, mesmo que, pelo caminho, tanta gente privilegiada tenha dançado energeticamente essa música sem ter reparado na profunda crítica social que lhe estava inerente. Pensando noutros exemplos, e para não irmos mais longe, quantos corpos brancos dançam o eletrizante funaná de Bitori em festas de “músicas do mundo”, onde os corpos negros ficam à porta, e sem nunca refletirem sobre a dura realidade que a música narra? E quantas pessoas entre nós dançam um tema como “Sr. Guarda”, de Plutónio, para logo a seguir relativizarem a violência policial? É claro que todos estes artistas já fizeram o mais difícil: transformar a dor, as dificuldades e as angústias em objetos artísticos dotados de força, poder e orgulho. Mas é imprescindível não esquecer que a música a que se dedicam não foi construída à medida do nosso entretenimento descomprometido e anestesiado. É música para provocar, desafiar, inquietar, mesmo quando imediatamente nos transporta para uma pista de dança. 

No meio de múltiplas viagens, personagens e leituras, Multitude é mais uma prova artística de um criador empenhado em construir música com um sentido performativo, quer dizer, música que suscita diálogo, crítica e provocação. Música que provoca interrogações, inquietações e descobertas. Em suma, música que se transforma em ação. Esse é também o seu sentido profundamente político.

No controlo do teu tempo, Stromae é um maestro de uma encenação que paradoxalmente não desiste da autenticidade. Numa era do “pós-género” e num tempo atravessado pelo individualismo, Stromae mostra ser possível fazer música que funde géneros, estilos, imagens, histórias, instrumentos e sonoridades, sem em nenhum momento perder o sentido estético, a relevância artística e a coerência narrativa. E mais importante ainda, mostra ser possível falar na primeira pessoa do singular, sem nunca ceder ao narcisismo. Falando de si e das suas personagens, está também a falar de todas e todos nós, do mundo em que vivemos e das suas possibilidades. Por mais tempo que esteja ausente, o seu tempo é o nosso. E é um privilégio vivê-lo. 


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