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Fotografia: Alejandro Ayala
Publicado a: 29/12/2021

Braços abertos e confiança no ritmo.

Ben LaMar Gay: “Se possuíres uma escuta aprofundada, vais ouvir alguém a guiar-te. O sampling é o maior exemplo disso”

Fotografia: Alejandro Ayala
Publicado a: 29/12/2021

O ano que está prestes a fechar as portas foi intenso para Ben LaMar Gay que inscreveu o seu nome nas fichas artísticas de lançamentos de Rob Frye, Macie Stewart, Circuit des Yeux ou Damon Locks, a perfeita tradução de uma sede colaborativa que ajuda também a compreender o trabalho que editou em nome próprio, Open Arms To Open Us, um dos marcos incontornáveis de mais um ano pandémico. Sobre esse álbum, escreveu-se por aqui: “Além da sua corneta, órgão, balafon, sintetizadores e ‘templo’, Gay contribui com a sua voz que, curiosamente, aqui adopta um registo que em certos momentos nos relembra Bill Callahan, uma tranquila forma de dizer que soa tão desligada quanto emocionalmente empenhada. E isso atravessa música que parece apostada em, mantendo-se sempre centrada no ritmo, tocar nas margens do hip hop, acercar-se de alguma harmonia rica brasileira, não temer modos mais pop, viajar livremente pelo mundo como se lhe aprouver e ignorar regras quando tem que ser”.

Essa generosidade exploratória, colaborativa e de entrega à arte sente-se claramente nas palavras com que nos recebe, do lado de lá de uma ligação Zoom. Começa por querer saber mais acerca da colecção de discos que se vislumbra nas costas do seu interlocutor e, no final da conversa algo longa, pede para que nos quedemos mais um pouco: “Não tenho assim tantas oportunidades de treinar o meu português, cara”, explica-nos o cornetista que viveu alguns anos no Brasil onde chegou a integrar o colectivo hip hop A Filial

Compositor, agregador de energias, cornetista, produtor, Ben LaMar Gay tem deixado vincada marca na cena de Chicago e no catálogo da International Anthem, mantendo, ao mesmo tempo, uma resoluta atitude independente que lhe permite viajar pelo mundo e somar créditos numa quantidade assinalável de projectos. Ao Rimas e Batidas falou sobre o seu mais recente álbum, procurando explicar o significado profundo das ideais de ritmo que explora neste trabalho.



Antes de mais, deixa-me congratular-te pelo teu último álbum, que está espantoso, e dizer-te que é uma honra poder falar um bocado contigo sobre ele.

Tens uma carrada de discos. Isso é formidável!

A maior parte desta colecção foi obtida nos últimos, diria, 30 anos.

Sentes que começaste essa colecção com o intuito de deixar uma espécie de biblioteca musical para a tua família?

Isso é uma óptima pergunta. Eu tenho uma filha de 25 anos que é historiadora de arte e nós temos falado sobre essa questão. Além destes discos ainda tenho uma grande colecção de CDs, livros sobre música… Eu gostava que estas peças se mantivessem juntas mesmo depois de eu partir e tenho falado com ela sobre isso. Gostava que isto pudesse ficar ao cargo de uma instituição ou algo do género porque não quero que esta colecção se desmembre. Demorou-me imenso tempo a conseguir reunir isto tudo [risos].

Entendo perfeitamente. E eu penso da mesma forma. Essas coisas têm de virar uma espécie de biblioteca para os que vêm depois. Tanto os discos que eu colecciono como aqueles que eu componho, são coisas que devem ser passadas para as gerações futuras.

Por acaso, esta conversa até está relacionada com a primeira questão que tinha para te colocar. Nas notas do teu Open Arms to Open Us, tu questionas-te sobre isso mesmo — “o que é que eu consigo deixar para os jovens que fazem parte da minha vida?” Na maior parte das vezes, os artistas falam sobre o passado — de como o seu trabalho se compara com as suas referências, por exemplo — e sobre o presente — se a sua música está a ser bem recebida e celebrada naquele momento. Raramente mencionam essa parte, de “como é que as gerações futuras se vão relacionar com aquilo que estou a fazer agora?” Essa é, obviamente, uma questão com a qual te debates.

Sim. Embora as pessoas quando pegam num disco, depois de ele ter saído da fábrica, já estejam a lidar com o passado [risos]. Tu gravas alguma coisa e aquilo demora o seu tempo até sair cá para fora. Quando sai, já faz parte do passado. Tudo aquilo que possas encontrar num disco ou num livro… O mundo já deu uma quantas voltas entretanto [risos]. Por isso, podes dizer que um artista está constantemente a lidar tanto com o presente como com o futuro quando cria um disco. Acho que lidas com tudo isso ao mesmo tempo. Nesta época especial que o mundo inteiro atravessa… É que é tudo tão global e está a acontecer ao mesmo tempo em todo o lado, que me deixa a pensar ainda mais no futuro, por alguma razão. Faz-me pensar na importância que têm o reunir coisas, coleccionar coisas e partilhar coisas. A tua filha olha para a tua colecção de discos tal como eu olhava para a do meu pai. Por essa razão, eu digo que está [em português] tudo bem [risos]. [Ainda em português] Eu falo português por causa da colecção do meu pai, sacou? Todos aqueles sons e todos aqueles humanos diferentes a fazerem sons conectaram-se a mim através da colecção de discos do meu pai. Todos os sons que reuni durante a minha jornada, todas as famílias que eu construí à volta do mundo graças à música… Eu quero que os jovens que fazem parte da minha vida também se consigam ligar a isso. A minha colecção de discos não é tão grande como a tua, por isso tenho de ser eu a fazer a música e a informá-los das outras vozes que existem. Deixá-los ouvir igbo da Nigéria, kinyarwanda de Ruanda, deixá-los ler sobre o Mestre Candeia… Eles podem perguntar-se, “quem será o Candeia?” E podem pesquisar e descobrir todo esse universo de coisas bonitas. Trata-se de nutrir as pessoas. E essa é a única forma que eu tenho de ajudar neste momento.



Fala-me dos aspectos mais técnicos deste álbum. Tu reuniste aqui gente como Angel Bat Dawid, Tomeka Reid… Como é que conseguiste isto? Nasceu de sessões mais tradicionais, com a malta toda reunida em estúdio, ou foi mais à base de trocas de ficheiros?

Foi uma mistura completa. Todos os meus projectos são iniciados em casa. É quase como se estivesse a cozinhar e a adicionar diferentes ervas e especiarias na panela. É perceber qual é a história que precisa de ser contada. Se tu pegas num instrumento ou ouves um som qualquer, tu sentes que existe uma história que precisa de ser contada. Depois disso, ouves as vozes que podem ajudar-te. Tu passas-lhes as ideias e elas adicionam a sua voz àquilo, que por sua vez cresce. A construção deste álbum parece que durou uma eternidade. Inicialmente, queria fazer um disco ao vivo. Tive de mudar de ideias devido à pandemia. Isto começa comigo a enviar ficheiros às pessoas, até chegar a um ponto em que percebemos o que era este vírus afinal e conseguimos estar em sessões de gravação com as devidas precauções. Nessas sessões estava eu, um engenheiro de som e um músico convidado de cada vez, enquanto que, ao mesmo tempo, se dava a tal troca de ficheiros com os outros músicos. Sempre que tinha um músico comigo em estúdio, havia uma interacção humana muito especial. Isso notava-se. Eu podia estar a interagir só com um músico, a improvisar em conjunto, com uma qualidade humana muito presente. Essa sessão acabava e eu convidava um outro amigo para gravar por cima daquilo que tinha sido feito por dois humanos naquela mesma sala. Era uma pessoa a interagir com outras duas pessoas que também interagiram com aquela sala. Tens o exemplo da canção que fiz com a Angel, que não envolveu qualquer tipo de envio de ficheiros. Isso nasceu de um momento que aconteceu há alguns anos atrás, em que eu creio que estava com um pandeiro e um bombo. Nós estávamos numa festa e eu meti o telemóvel ao lado dela e da Gira Dahnee. Aquilo fui eu a captar discretamente um momento em que essas duas mulheres estavam a recordar canções do tempo em que eram crianças. A “Sophisticated Lady” é uma canção tradicional muito antiga que as mulheres negras cantam há muitos anos. Na versão desse tema que está no meu álbum, tu ouves a Angel e a Gira a aperceberem-se que conhecem versões diferentes da mesma canção. A Angel canta a sua versão de Louisville, enquanto que a Gira interpreta a versão que conhece da Flórida. É interessante, porque existem outras pessoas que aprenderam outras versões para o mesmo tema. Eu penso: se músicas como esta sobrevivem sem a necessidade da indústria e da Internet, apenas através da sabedoria popular — de boca em boca; de família em família — então está tudo bem. estas canções mantêm-se vivas sem a necessidade de terem uma máquina a empurrá-las. Voltando ao centro da tua questão, este disco foi criado através de uma mistura de vários processos — das sessões de estúdio tradicionais ao envio de ficheiros e até mesmo com base em alguns momentos antigos da minha vida, captados através do telemóvel.

O jazz tradicional sempre foi muito sobre um determinado momento muito específico, tanto no tempo como no espaço. Um quarteto de músicos podia juntar-se num estúdio em Nova Jérsia ou num clube de Chicago para gravar aquele preciso momento. Essa gravação seria como que uma fotografia desse acontecimento em particular. A tecnologia veio alterar por completo essa noção e tu próprio já me deste um exemplo prático que o comprova. Muitos dos trabalhos que tenho andado a escutar — como os que têm saído pela International Anthem — abandonam essa práxis do tempo e do espaço e favorecem uma forma muito mais fluida para lidar com a distância ou com a oportunidade, tal como aconteceu nesse tema que me descreveste, que nasceu da urgência que sentiste em captar aquelas duas mulheres a cantar. Sentes que a música que fazes ainda é uma continuação do que veio antes ou já se desapegou por completo da história?

É uma continuação de tudo, sem dúvida. Antes, as pessoas não tinham acesso aos microfones para gravar as coisas. Agora, sentem-se mais confortáveis com a tecnologia e há toda uma panóplia de ferramentas disponíveis. O som não pára mas é sempre tão mais fixe quando apertamos o botão de gravar [risos]. Nós já assistimos ao aparecimento de tantas invenções e de novos processos de gravação… Está no nosso ADN. Não importa qual é a ferramenta que usamos. Nós sabemos como é que deve soar uma gravação. Faz parte da nossa cultura, utilizar a tecnologia para eternizar momentos. Eu não pretendo abandonar nenhuma ideia mas sim expandi-la.

Quando estavas em casa a desenvolver os primeiros traços do disco — e já que me falaste que também o teu pai era um coleccionador de discos — o sampling entrou nessa equação ou apenas recorreste a sons gravados por ti?

Utilizei ambos os processos. Quando eu samplo, o que eu mais gosto é de ir buscar um pequeno fragmento de algo e de o granular até ouvir outra coisa qualquer. É esse pequeno fragmento que me vai inspirar a criar todo um novo universo a partir desse bocado.

É como se colocasses uma lupa sobre esse pedaço?

Isso. Podes até meter algo em loop, seja um ritmo ou uma voz humana, e acabas por ouvir diferentes histórias. É quase como se estivesse a ouvir um espírito que me dissesse, “Ben, tu devias de fazer isto. Esta podia ser a história da tua trisavó de Angola”, ou algo do género. Eu deixo sempre a minha imaginação trabalhar. Eu nunca estive nesses sítios mas, à medida que o loop toca, consigo ter certas experiências. É isso que faz a cena do loop ser tão boa, porque cria uma espécie de transe e tu consegues ouvir diferentes histórias. É como se alguém, num outro lado qualquer, te estivesse a pedir para projectares aquela história porque as pessoas precisam de a ouvir. Eu acredito piamente nisso. Mesmo quando pegas num instrumento, se tu possuíres uma capacidade de escuta mais aprofundada, tu vais conseguir ouvir alguém a guiar-te. O sampling é o maior exemplo disso.



O sampling trata de aceder a memórias. No teu álbum, existe também um peso emocional muito grande agregado a essa ideia de memória. Associar essas duas coisas, a memória e a emoção, deixa-me a pensar se não haverá também um lado político no disco, no sentido em que se pode tratar de música de resistência. Aquilo que o universo nos está a dar de momento, musicalmente falando, é tudo muito clínico — e cínico, também [risos] — quase que científico. Tu estás a ir buscar os teus recursos a outras fontes.

Totalmente. Não passa de uma observação daquilo que estamos a vivenciar e de tudo aquilo que escutamos e ouvimos em todo o tipo de documentação, seja ela sob a forma música, cinema, livros, etc. Nós, neste momento, pensamos no quão intensas as coisas se tornaram. Mas as coisas sempre foram intensas. Podes sentir que levaste uma bofetada quando essa intensidade se revelou, mas a verdade é que ela sempre esteve presente. Este álbum é político mas é muito mais emocional do que isso. Aquilo que eu quero é que as pessoas sintam que têm permissão para relacionarem a minha música com as suas próprias histórias e posições políticas. Isso é necessário. Eu não quero estar a pregar para ti. Aquilo que eu sinto em Chicago pode ter relações com aquilo que tu sentes em Portugal. Se tu pensares nos teus antepassados e na tua própria experiência na Terra, com tudo aquilo com o qual estamos a lidar de momento, vais conseguir encontrar elos de ligação. Isso é o início de qualquer mudança. Basta pensar na forma como lidamos com o ritmo. As pilhas de discos atrás de ti estão recheadas de ritmos. Existe ritmo naquilo que falamos. Isso faz-me pensar em como o ritmo tem conseguido sobreviver, mesmo apesar de já existir há milhares de anos. É curioso. Pode também ser uma fantasia da minha parte, mas a fantasia ajuda-te a formular coisas e a torna-las reais. Só não posso é pregar às pessoas, até porque eu próprio sou também um ouvinte, faço as minhas pesquisas e nem sei assim tanta merda quanto isso. Mas sei o quão real é o meu amor para com o ritmo, por isso deve existir algum segredo por detrás disso que nós podemos ainda não saber desvendar. E se nos ritmos estivesse contida uma dica que nos permitia quebrar este ciclo? Ainda para mais neste clima pandémico… É como se estivéssemos a iniciar um novo loop. Isto pode muito bem ser o início de um ciclo qualquer que vai durar, sei lá, uns 100 anos. Eu senti-o chegar meses antes. Senti algo a acontecer. E por ter sentido que o início deste loop estava a chegar, comecei à procura de algo que me pudesse ajudar a quebra-lo. Isto posso ser apenas eu a atirar ao ar, mas e se existissem mensagens escondidas dentro do ritmo que são passadas de geração em geração? Talvez, se nos debruçássemos mais sobre o que é que determinado ritmo pode significar, conseguíssemos furar este loop. Porque nós adoramos loops. Toda a música que consumimos é baseada em loops. A nossa própria vida é baseada em loops.

Das estações do ano às horas do dia.

Isso. Há pessoas que sabem como destruir esses loops. E se essas pessoas conseguiram decifrar isso, talvez nós também o consigamos fazer. Tentar alterar a coisa.

Eu estava a dar uma vista de olhos àquilo que foi o tua marca em 2021 e encontrei o teu nome em projectos do Rob Frye, Macie Stewart, Damon Locks e, talvez o mais surpreendente de todos, pelo menos para mim, Circuit Des Yeux. Estiveste realmente muito ocupado durante o ano. Essa prática colaborativa é algo importante para ti?

Para mim, tudo se resume a colaborações. Tudo é uma colaboração porque tu estás rodeado de ideias. Seja isto [pega numa garrafa reutilizável] ou umas escadas. Quando tu pensas nisso, tu percebes que estás mesmo rodeado de ideias brilhantes. Todos evoluímos à base da colaboração. Colaborar é a coisa mais natural de se fazer. Todos estes nomes que aparecem no meu disco são amigos. Isto é uma coisa muito de adulto. E o que há de melhor para além de fazer música e estar a divertir-me com amigos ao mesmo tempo? Aquilo que me trouxe até à música foi ver a minha família a conviver e a ouvir música, com toda a gente a expressar partes do seu mundo. Eu tenho estado muito ocupado, especialmente nesta altura, e não tenho conseguido parar. Tive de adaptar algumas coisas nas quais ando a trabalhar ao domínio do virtual mas nunca tive uma pausa. E sempre que isso envolve pessoas, isso nutre-me e ajuda-me a ultrapassar esses períodos de maior solidão. Foi medicinal, diria.

Terapêutico.

Terapêutico! Era essa a palavra que eu procurava.



Observando de longe, sempre tive a sensação de que a International Anthem assenta muito nesse conceito de família. É assim que funciona a editora?

É, sim. É um grupo de pessoas com diferentes pensamentos e ideias. Não é que sejamos um só. Entendemos o espaço que temos de dar uns aos outros e de que formas podemos dar suporte uns aos outros nos seus respectivos projectos. É muito relaxante. A cena da amizade e dos laços que se criam projecta-se dessa mesma forma que tu a sentes. É inteiramente verdade. Nós tentamos fazer as coisas o melhor possível mas não estamos aqui pelo dinheiro [risos]. Nós somos basicamente os teus amigos do underground, que estão a tentar trabalhar juntos. Eu sempre estive inserido em grupos assim desde que me lembro. Fiz parte de uma crew de graffiti, por exemplo, em que nós nos juntávamos para ir pintar comboios ou para descobrir novos spots, fosse de dia ou de noite. Depois, naquele espaço, tu pintas a tua própria cena. Se não estiveres a pintar, estás de vigia para proteger os outros. No dia seguinte, voltas para ver o que fizeste e tens um mural inteiro com diferentes pinturas, cada uma com o seu estilo. Depois tens o nome da crew em letras grandes. É basicamente isso. Quando temos digressões, vamos todos juntos. É interessante. MAs é uma abordagem à qual eu já estava habituado, por estar inserido na cultura do hip hop.

Queres falar-me também do teu envolvimento com a Association for the Advancement of Creative Musicians e que tipo de trabalho eles desenvolvem nos dias que correm?

A AACM está com 56 anos. A cena de viver em Chicago fez com que eu ouvisse falar destas personagens — músicos — durante a vida toda. Malta que eu não conhecia pessoalmente mas cujos nomes eu sabia. Eu ouço falar do Henry Threadgill desde os meus dez anos. Eu não sabia quem ele era mas ouvia o nome dele, porque os meus pais se davam com alguém que conhecia o Threadgill. Sempre foi assim. Quando comecei a ficar mais crescido e a tocar instrumentos acabei por me cruzar com algumas dessas pessoas. Isso não aconteceu com o Henry Threadgill mas aconteceu com gente como o Ernie Hawkins, com a Nicole Mitchell, a Renée Baker, o Douglas Ewart… Eles lembram-me constantemente de como tenho de lidar com a cidade, com o país e com o mundo. Porque eles sempre viveram no mesmo sítio e conseguiram expandir-se para diferentes locais. Ensina-me a ser eu próprio. Eu tive aulas na AACM com uma data de gente que as pessoas nem fazem ideia de quem são. Lá tens não apenas a malta famosa mas também aqueles que são os pilares do underground e que mantêm a cena viva. Eu cresci aqui e senti toda essa energia mesmo ainda antes de ter noção do que era a AACM. O título do livro do George E. Lewis, A Power Stronger Than Itself, é muito bom porque é uma cena mesmo real. Essa energia não vive só dentro da AACM. A própria cidade de Chicago, com todos esses grupos que se formam, como os AfriCOBRA… O ambiente e a energia desse tempo… Acho que isso sempre teve no espaço durante milhares de anos. Acredito que até os nativos sentiam isso, através da relação deles com o Lago de Michigan, que é um dos maiores da América. Há qualquer coisa naquela água fresca. É todo o ambiente que envolve a cidade. Essa energia já existia antes da AACM. Eles foram apenas um grupo que conseguiu canalizar isso. Tu sentes isso a andar nas ruas.

A pandemia afectou a cena dos clubes de Chicago? Tens tocado ao vivo?

Eu tenho tocado. A pandemia afectou muitos clubes e negócios. Em Chicago tens a tradição do Velvet Lounge, que é do Fred Anderson, outro grande membro da AACM. Todos os criativos e weirdos têm a oportunidade de levar lá o seu som. Dessa tradição surgiu também o Constellation, do Mike Reed, entre outros. É tudo sobre fazeres a tua cena e deixares rolar. Mas tens clubes que só se focam na venda de bebidas e isso; a música aparece no final da lista deles. Esses negócios ruíram. Esses negócios acabam sempre por cair porque nunca têm a música como figura central. Depois tens essa malta, como o Mike Reed, que é um baterista. É isso que nos faz sentir que aquele é que é o local indicado para tocar, porque há realmente interesse na música. Podes só ter uma pessoa na plateia que não vais deixar de receber o teu cachet, porque estás a ser pago por um músico que integra a mesma comunidade. Há poucos sítios assim e é claro que esses sobrevivem. É o que eles sabem fazer [risos]. Há muita gente que entra nisso sem se importar com o som. Eles tiram partido do som. Depois caem [risos]. Gajos como nós, vão continuar a fazer o seu som não importa como nem porquê. Eu continuo a tocar por existirem espaços assim.

Tens planos para uma digressão em torno deste álbum? Que músicos vão andar contigo a tocá-lo?

Desde a altura do Downtown Castles Can Never Block The Sun, em 2018, que tenho actuado em quarteto. Sou eu an corneta, o Tommaso Moretti na bateria, o Will Faber na guitarra e o Matt Davis na tuba. Para este álbum, por ter uma presença feminina tão grande, eu vou adicionar a Ayanna Woods, Por isso, será um quinteto. Neste momento, estou a apontar para Julho para conseguir uma digressão pela Europa. Há algumas datas já agendadas aqui e ali. Não sei até se não vi já o nome de Portugal lá pelo meio…


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