A decisão inédita do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) de condenar por infração concorrencial (prática concertada) três empresas do setor de telecomunicações que formaram um consórcio para participar de uma licitação pública causou surpresa e levantou diversas dúvidas. Isso porque a formação de consórcio é permitida não apenas pela Lei de Licitações como também pela Lei de Defesa da Concorrência – que afasta a necessidade de se notificar ao Cade consórcios para licitações –, além de estar prevista em diversos editais de licitações.

De fato, a formação de consórcio em licitações de infraestrutura é uma prática bastante comum e os editais regulam a formação de consórcio em termos bastante simples. Basicamente, permitem a associação mediante consórcio, exigem que a empresa líder seja nacional em caso de consórcio formado com empresas estrangeiras e, em alguns casos, trazem requisitos econômicos mais elevados para as empresas consorciadas. Os editais mais recentes acrescentam a vedação de formação de consórcio entre empresas que tenham alguma ligação de natureza societária. Nada além disso.

A própria configuração do consórcio, em alguns casos, revela a finalidade da associação entre as empresas. É possível identificar, por exemplo, fundos de investimento, detentores da capacidade financeira, se consorciado com empresas detentoras da capacidade técnica para prestação dos serviços ou exploração de dada infraestrutura pública. No setor de infraestrutura aeroportuária, especialmente nas primeiras concessões, é possível identificar operadores nacionais buscando a experiência de agentes econômicos estrangeiros para viabilizar a exploração dos ativos nacionais.

Nesse contexto, por que o Cade considerou ilegal a formação de um consórcio entre concorrentes? Em resumo, a autarquia apontou que a formação de um consórcio entre concorrentes pode ser um instrumento que frustra o caráter competitivo da licitação quando:

  • a participação de mercado detida conjuntamente pelas empresas for elevada (a Lei de Defesa da Concorrência estabelece que uma posição dominante é presumida quando a empresa ou grupo de empresas controlar 20% ou mais do mercado, ainda que esse patamar possa variar dependendo das características do mercado envolvido);
  • não houver complementariedade de atuação entre as empresas (no que toca à prestação do serviço objeto da licitação);
  • não houver comprovação de que uma empresa sozinha seria incapaz de atender integralmente o contrato (ou seja, da racionalidade econômica para a sua formação); e
  • não houver comprovação de eficiências (o deságio com relação ao contrato anterior firmado com o ente licitante não seria uma prova de que a formação do consórcio teria possibilitado a prestação de serviços de forma mais eficiente e menos custosa).

Há pelo menos mais um caso em análise: em 2019, a Superintendência Geral do Cade promoveu uma nova investigação relacionada à formação de um consórcio entre empresas em leilões de arrendamento das áreas portuárias destinadas à movimentação e armazenagem de combustíveis. Na nota de instauração dessa investigação, a autarquia destacou que as justificativas apresentadas para a participação em consórcio poderiam ser contornadas com a formação de consórcio com outras empresas que não as suas principais concorrentes.

O uso do instituto de consórcios para evitar a competição entre empresas em licitações não é uma preocupação apenas do Cade. Na União Europeia, a minuta de guia para análise de acordos de cooperação horizontal – publicada este ano pela Comissão Europeia e que entrará em vigor em 2023 – trouxe pela primeira vez orientações sobre a formação de consórcios do ponto de vista concorrencial. Essas orientações guardam relação próxima com a recente decisão do Cade.

De acordo com o guia, pode haver restrição à concorrência “se não for possível excluir que as partes do acordo de consórcio poderiam, cada uma delas, concorrer individualmente no concurso (ou se houver mais partes do que o necessário num acordo de consórcio)”. O guia recomenda que a análise da compatibilidade dos consórcios com a legislação concorrencial seja feita caso a caso, com base em elementos como ambiente competitivo, racionalidade e ganhos de eficiência. O consórcio pode ser pró-competitivo se a participação conjunta no certame permitir que as partes apresentem uma proposta mais competitiva do que se participassem individualmente (em termos de preço/qualidade/variedade) e se os benefícios a favor do licitante compensarem as restrições à concorrência decorrentes do consórcio. O guia ressalta que ganhos de eficiência devem ser repassados aos consumidores. Ganhos que beneficiam apenas as empresas consorciadas são considerados insuficientes.

Sob a ótica da Lei de Licitações, o posicionamento recente do Cade pode vir a gerar mais insegurança jurídica ao ambiente de contratações públicas no Brasil já marcado por diversas incertezas, como expectativa de demanda, comportamento dos preços dos insumos ao longo dos anos, probabilidade de superveniências negativas como identificação de vícios construtivos, materialização de passivos ambientais, possibilidade de anulação ou revogação da licitação, atuação oportunista do Poder Concedente na execução do contrato e até mesmo extinção antecipada do contrato. A decisão em comento também deixa no ar uma série de dúvidas, como, por exemplo, o que deverá ocorrer com uma licitação na qual se sagrou vencedor um consórcio posteriormente considerado ilegal pelo Cade.

De qualquer modo, até que haja mais clareza sobre o tema, com novos posicionamentos do Cade, os seguintes cuidados devem ser tomados por empresas que pretendem formar consórcios com concorrentes para participar de licitações:

  • avaliar a participação de mercado das empresas envolvidas (market share conjunto de pelo menos 20% é considerado posição dominante pelo Cade), bem como se há outros concorrentes viáveis;
  • avaliar os motivos que impedem a participação individual das empresas que pretendem formar consórcio na licitação (como insuficiência de recursos financeiros e técnicos, de capacidade ou de portfólio);
  • avaliar os motivos que permitem às empresas apresentar uma proposta mais competitiva em consórcio do que individualmente (como complementariedade de atuação – geográfica ou de produtos/serviços – ou serviço integrado que seria inviável individualmente);
  • avaliar detalhadamente ganhos de eficiência do consórcio (como melhor preço, qualidade e/ou variedade e se eles trazem reflexos positivos para os consumidores);
  • caso seja necessária a troca de informações concorrencialmente sensíveis entre as partes do consórcio (como custos, valores e volumes de vendas e quaisquer dados confidenciais de seus negócios), ela deve se limitar ao estritamente necessário para participar da licitação e devem ser adotados cuidados prévios, como a elaboração de protocolo antitruste, com formação de clean teams, para que essas informações não sejam usadas em contratações futuras ou nos demais negócios das empresas; e
  • todas as avaliações acima devem ser devidamente documentadas, incluindo o protocolo antitruste e e-mails, pareceres, memorandos e apresentações que demonstrem os fundamentos e a motivação pró-competitiva das empresas à época da formação do consórcio.